quarta-feira, 24 de setembro de 2008

Uma nota sobre culpa e esmola

Eu acredito no homem. Acredito de verdade. Disse outras vezes aí que o homem não nasce pronto para ser moral e justo, e isso é verdade. No fundo, “no âmago de nosso ser”, somos mesquinhos, e não temos problema algum em fazer uso do sofrimento de outro homem apenas para um momento de satisfação nosso. O estado em que chegamos hoje prova muito bem esse ponto. Mas isso não significa que não possamos passar desse tal “destino” genético ou biológico e tornar-se algo muito superior. Da mesma forma que podemos ser mesquinhos, temos possibilidades (biológicas e psicológicas, inclusive) de superar esse estado. Essa é minha posição básica sobre as coisas, e será repetida várias vezes aqui.

No entanto, esse estado ainda nos é distante. Pego um exemplo simples, o qual vivenciei faz pouco. Todos nós lidamos cotidianamente com a pobreza. Vemos na televisão, nas ruas. Alguns de nós fecham os vidros dos carros, ou mudam de canal, com medo. Outros, abrem. E dão dinheiro, comida, agasalhos, enfim... “fazem a sua parte” como dizem. Passei por um momento desses. Parei num sinal e um menino, novo e magérrimo, veio até mim. Como ele fica num ponto em que passo quase diariamente, o drama fica ainda pior, pois o acompanho bem mais de perto. Então, não resisti, confesso. Como vários de nós, dei dinheiro para ele várias vezes.

O que fui pensar depois é no quanto isso não só não ajuda, como é extremamente prejudicial. Acredito que, quando vemos a pobreza diante de nós, além de pena, sentimos culpa. Culpa por achar que não podemos fazer nada frente à tamanha injustiça. Culpa por estarmos nós, do dentro de nossos carros, com o ar ligado (frio ou quente, dependendo da situação), enquanto um outro ali, tão perto, passa frio ou fome. Trata-se de um sentimento belíssimo. Sentimos uma dor pela humanidade como um todo. É um momento, para mim, extremamente humano. Um dilema moral, que passa despercebido todos os dias por nós.

A questão está, justamente, na maneira como reagimos a esse dilema. O que eu fiz, e que costumamos fazer, seja em ações “menores” (como dar uma esmola), ou em “maiores” (das dinheiro para uma instituição de caridade, ou até mesmo manter ou trabalhar em uma) é uma ação meramente paliativa, que consegue, se feita sozinha, no máximo mascarar o real problema. Quando agimos dessa maneira, estamos apenas expiando nossa culpa, em um mecanismo puramente psicológico. Sinto culpa, que me incomoda, e faço algo para que ela passe. Dar uma esmola é uma coisa rapidinha, que me permite pensar que eu sou um “cidadão de bem” e ir embora pra casa dormir tranqüilo, até amanhã, quando vou ver o pedinte de novo e sentir mais culpa, dar esmola, e o círculo continua.

Isso não está nem perto de “fazer nossa parte”. Afinal, o tal menino para o qual eu dei dinheiro não engordou nem um pouquinho até hoje. O pedinte que me disse que precisava só de um dinheiro para voltar pra casa, que era um trabalhador honesto com família, estava no mesmo lugar no dia seguinte, e sequer lembrou de mim. A demanda nas instituições em que trabalho não diminui, e sim aumenta. Agindo dessa maneira, atuamos apenas sobre o sintoma, sem atingir a causa e sem provocar nenhuma mudança efetiva.

Como estamos vendo, com o que já disse até agora, é preciso ir além do sintoma. E o que aparece por trás dessa pobreza? Ora, um mecanismo social que naturalmente promove a desigualdade (o tal do mercado, conhece?), junto com péssimas políticas sociais, voltadas muito mais para a caridade (portanto, apenas a expiar nossa culpa), que gera muito mais visibilidade (e votos) do que uma mudança social de fato. E essa mudança, insisto, passa pela política. Somos nós quem escolhemos as políticas que serão implantadas. Somos nós quem decidimos se vamos preferir continuar deixando o tal do mercado decidir nossas vidas (e ele é absolutamente “sem coração”, como podemos ver) ou investir em medidas que o regulem e promovam não desigualdade, e sim igualdade. Somos nós quem decidimos só tentar fazer a culpa passar ou ir até a raiz do problema.

E não para por aí. O mundo, infelizmente não oferece saída fácil. Podemos dizer, hoje, que é um absurdo: “vou tirar do meu dinheiro suado pra sustentar mendigo e vagabundo?” Até que esse vagabundo te assalta, mata, ou estupra. E aí, quem vai poder te defender? Te dou uma esmola, se quiser.

3 comentários:

Mateus disse...

Eu admito que só pensei no Chapolin Colorado no final do texto.

O que me deixa mais puto com a situação é que ninguém faz nada, ninguém mesmo, nem a gente. Vai ver é porque é confortável mesmo, comer picanha e dar R$ 0,25 pro mendigo da esquina e dormir gordo e tranquilo...

Leonardo disse...

Mas é confortável sim... até o dia em que a pobreza cobra seu preço, como disse, e vem roubar seu carro.

negoailso disse...

sei nao,

tipo, saber que nao adianta dar esmola mas só dar por medo daquele discurso do "eu podia estar matando, eu podia estar roubando"...

nao chamo-vos aa insensibilidade, mas o que podemos fazer é trabalhar e gerar capital. é o que funciona, creio. esmolar NAO é emprego